CHAMAS QUE O TEMPO LEVOU »
O foco inicial foi uma cafeteira ligada durante tempo excessivo. Para João André da Silva, esse acontecimento é impossível de se esquecer
O foco inicial foi uma cafeteira ligada durante tempo excessivo. Para João André da Silva, esse acontecimento é impossível de se esquecer
Mariana Sacramento - Correio Braziliense
Publicação: 05/08/2010 08:05
Na piscina, ele se lembra que Oscar Niemeyer desenhou um ovo no chão e disse: "Está aí, podem fazer" |
Mineiro de Cruzeiro da Fortaleza, João chegou a Brasília aos 16 anos com o sonho de estudar e trabalhar na nova capital de JK. Seu primeiro emprego foi como copeiro no Brasília Palace Hotel, que naquele ano de 1964, era o palco dos grandes eventos da cidade emergente. Ao longo de 14 anos, passou por todos os postos: foi caixa, recepcionista, trabalhou no controle e no almoxarifado. Ele conciliava as atividades hoteleiras com os estudos. Formou-se em administração. Depois de muito esforço, o empregado virou patrão. João chegou à gerência, cargo que ocupou até o incêndio que culminou com a interdição do hotel. “Amanhã (hoje) faz 32 anos que eu passei o maior sufoco da minha vida e perdi o meu emprego”, recorda.
O fogo começou por volta das 5h na sala de reuniões, localizada no 3º andar. Uma cafeteira, que ficou muito tempo ligada, sobrecarregou a rede elétrica e provocou um curto-circuito. O vento forte daquela madrugada ajudou na propagação das chamas. O prédio ficou parcialmente destruído. O ex-gerente lembra que, na ocasião, todos os 135 apartamentos estavam ocupados. Ninguém ficou ferido. A direção do Palace calculou o prejuízo: Cr$ 30 milhões, o equivalente hoje a aproximadamente R$ 10 milhões (valor atualizado com a inflação do período). A expectativa era que o hotel fosse reaberto em 180 dias. Mas as portas só foram reabertas ao público em 2006. “Dia 5 de agosto é, para mim , uma data muito triste. Aqui construí minha carreira e me casei. Eu realmente sou apaixonado por esse lugar”, declara João.
Histórias
João André no prédio atual: tantos anos depois, a lembrança do dia trágico ainda se faz presente |
A cerimônia de casamento de João com a portuguesa Maria Amélia Viva André da Silva foi celebrada no famoso salão de festas do Hotel, em 30 de dezembro de 1977. O espaço, aliás, era bem democrático. Com painel de Athos Bulcão ao fundo, aos sábados eram realizadas festas regadas a vinho e a cerveja. Hóspedes, a maioria políticos e servidores públicos de alto escalão, e visitantes ilustres (veja quadro) varavam a madrugada ao som da bossa nova. Na manhã seguinte, o pessoal da limpeza entrava em ação e deixava o salão pronto para missa dominical. “Era celebrada por dom Geraldo Ávila, que na época era padre. Uma vez, ocorreu um fato curioso. Saiu na chamada no jornal: “Missa celebrada em boate”. Isso porque o salão era famoso pelas festas noturnas. Daí, dom Geraldo chamou o jornalista para participar. A missa virou tradicional”, relata.
João narra outro fato que permeia o tempo: “Diz a lenda que Oscar Niemeyer estava irritado com a demora da construção da piscina do hotel. Então, num domingo de Páscoa, repentinamente desenhou um ovo no chão, mostrou aos engenheiros e disse: ‘Está aí , podem fazer’.” A piscina, que tem 1,5 metros de profundidade, de fato é oval.
Foi próximo à área da piscina que, certa vez, uma ratazana do cerrado surgiu do jardim e subiu nas pernas de uma moça. “Não deu outra, a mulher começou a tirar a roupa no meio de todo mundo”, conta, aos risos, o ex-gerente. Naquele tempo, o lado externo do hotel tinha 300 mil metros quadrados de extensão. “Fazíamos divisa com o Palácio da Alvorada.” O crescimento acelerado da capital da República abocanhou boa parte da área verde. Hoje, o jardim tem 62m².
Reencontro
Entre tantas lembranças, a que permanece mais viva na memória de João André é a do dia em que salvou mãe e filha do incêndio. “Era uma família do Rio Grande do Sul que estava hospedada no hotel há dois meses. O marido estava trabalhando no momento do fogo. A mulher tinha acabado de passar por uma cesárea, o bebê devia ter uns quatro dias de vida. Por isso ela estava com dificuldades para deixar o prédio”, conta. O então gerente encontrou a mulher de camisola no corredor do 2ª andar, próximo ao quarto onde a família estava acomodada. “Eu e o chefe de cozinha, conhecido como João Pimenta, pegamos um cobertor, amarramos, fizemos como suporte tipo uma rede e carregamos nos ombros a mulher e o bebê para fora.”
O dia fatídico: 5 de agosto de 1978 entrou para a história de Brasília |
João André decidiu acompanhar as mulheres na visita. “É claro que no primeiro momento nós não nos reconhecemos. Mas quando ela, Eunice, começou a contar que estava no dia do incêndio e que um senhor a ajudou a sair, caiu a ficha. Eu e ela nos emocionamos”, relembra. O passeio chegou ao fim. As mulheres retornaram para o Sul, mas antes disso deixaram o telefone de contato com João. Na terça-feira, ele foi informado que Eunice faleceu em um acidente de carro e que Lúcia se casou com um americano e mudou-se para os Estados Unidos.
Mineiro de origem, mas brasiliense de coração, João tem gratidão eterna a Brasília, ao Palace Hotel e ao responsável por tornar toda essa história, que mais parece um filme, em realidade. “Juscelino Kubitschek tinha uma mensagem divina, comprovada pelo carisma e pela conquista em construir a capital do país no Planalto Central”, destaca.
Amanhã (hoje) faz 32 anos que eu passei o maior sufoco na minha vida e perdi meu emprego”
João André da Silva, 63 anos, administrador e ex-gerente do Brasília Palace Hotel
Lista de hóspedes ilustres:
# Rainha Elizabeth
# Ghe Guevara
# Fidel Castro
# Papa Paulo VI
# Roberto Carlos
# Ney Matogrosso
# Caetano Veloso
Curiosidade
O hóspede que permaneceu mais tempo no hotel foi o ministro e presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Galot, que chegou a passar 12 anos no então apartamento 305 (os números foram mudados). JK também era figura cativa no local. Ele chegou a morar durante um tempo em uma suíte no 3º andar com aproximadamente 150m². O apartamento tinha três quartos e uma sala.
Atualidade
Hoje, o Brasília Palace mantém vivo o glamour do primeiro hotel de Brasília. Inaugurado em 1957 e projetado por Oscar Niemeyer, o prédio foi construído para receber as comitivas que vinham conhecer a construção da nova capital. Com 13 mil m² de área construída, o hotel foi planejado com uma estrutura de 160 metros de comprimento, tendo três andares. Durante o tempo em que ficou inoperante, o Palace ganhou o apelido de “predinho” e passou a ser utilizado para práticas de rapel. O hotel abriu as portas novamente em setembro de 2006, após passar por uma ampla reforma. Antes com 135 apartamentos, hoje conta com 156, cada um com 22, 75 m². A diária custa cerca de R$ 210. Móveis e peças de Athos Bulcão, Sérgio Rodrigues, Pierre Paulin , entre outros, compõem a decoração do interior do hotel. “Tudo que sobrou do antigo nós recuperamos”, afirma o gerente atual, Daniel Bernardes.
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