quarta-feira, 19 de abril de 2023

Plano Piloto

Cai por terra o mito segundo o qual Brasília nasceu na Rodoviária do Plano

30/07/2011 - Correio Braziliense

Aos 75 anos, ainda em plena atividade, o engenheiro Ronaldo de Alcântara Velloso relembra um momento crucial da história do Plano Piloto: a demarcação do Eixo Monumental, do Eixo Rodoviário e da Estaca Zero. Velloso guarda um tesouro: uma cópia da caderneta em que Joffre Mozart Parada calculou as coordenadas da nova capital.

Ronaldo Velloso, na Plataforma Rodoviária,  de frente e de costas para o Eixo que ajudou a demarcar: lembranças idílicas de uma noite de Lua


Brasília não nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse. Ou seja: o Plano Piloto não foi riscado no Cerrado incólume a partir do cruzamento dos dois eixos em ângulo reto. Na prática, a cidade que Lucio Costa inventou com 3.895 palavras começou a surgir na cruz fincada no ponto mais alto da região, a hoje Praça do Cruzeiro. De lá, os topógrafos e os tratores foram descendo, uns atrás dos outros, no rumo leste, até alcançar o lugar onde seria demarcada a Praça dos Três Poderes. Só então, o engenheiro Joffre Mozart Parada demarcou a Estaca Zero, o sinal da cruz, e daí foi fixando, ponto a ponto, o Eixo Rodoviário Sul. E, depois, o Eixo Rodoviário Norte.

O mito segundo o qual Brasília nasceu na Rodoviária cai por terra com o depoimento do engenheiro agrimensor Ronaldo de Alcântara Velloso, um dos topógrafos a demarcarem os dois eixos que, cruzados, definem o corpo da cidade. Aos 75 anos, Velloso continua em atividade profissional numa empresa de engenharia de pavimentação asfáltica com sede na Cidade do Automóvel. Está tão ativo quanto suas lembranças dos nove meses, entre dezembro de 1956 e setembro de 1957, nos quais participou da demarcação da área em que se instalariam a Novacap, a Cidade Livre e o Plano Piloto, pela ordem.

Do escritório da Novacap no Rio de Janeiro chegavam, via rádio, as coordenadas que determinavam o local exato em que a cidade seria demarcada em relação ao Sol e às curvas de nível, marcas que indicam a declividade do terreno. Os engenheiros da equipe de Lucio Costa, chefiados por Augusto Guimarães Filho, determinaram também se a cidade ficaria mais próxima ou mais distante do futuro lago. Dito de outro modo, eles aterrissaram o Plano Piloto no terreno que lhe foi destinado a partir de um desenho em escala 1/25.000. Esticaram uma imagem do tamanho de uma folha de cartolina até a escala de uma cidade real.

Em Brasília, Joffre Parada recebia as coordenadas gerais e calculava as específicas; colava palmo a palmo, por assim dizer, o imenso Plano Piloto. Os primeiros cálculos da nova capital estão guardados num armário de metal na sala de Ronaldo Velloso. É uma cópia amarelada do caderno original, que o engenheiro deixou com o topógrafo para que ele pudesse pôr a cidade no chão. São equações, gráficos, números decimais, sinais aritméticos, triângulos, croquis, tudo escrito com a letra caprichada, a lápis, de Joffre Parada. O Plano Piloto está ali, matematicamente calculado.

Definição

A turma de topógrafos que  demarcou os dois eixos em foto do dia do começo da tarefa, 20 de abril de 1957O mineiro Ronaldo Velloso estava demarcando a Cidade Livre quando Parada o chamou para tarefa muito mais importante: definir com estacas o local onde seria construído o Plano Piloto. ;O escritório da Novacap no Rio mandou pra gente o azimute (ver glossário). Esse ângulo foi determinado no Rio de Janeiro. Brasília partiu do Cruzeiro, onde tem um marco de coordenadas do IBGE. Com uma equipe de uns 10 homens, fomos descendo com o teodolito, locando o Eixo Monumental até a Praça dos Três Poderes. Depois, então, determinaram-se as asas, o Marco Zero. É chamado de Zero porque pra um lado era a Asa Sul e pra o outro, a Asa Norte.;

Se de dia os topógrafos iam marcado a piquete o Eixo Monumental, de noite Joffre Parada ia calculando a cidade. ;A máquina calculadora era uma Facit daquelas que tinham uma manivela que ia pra frente e pra trás. Os cálculos eram feitos com 11 decimais. Era uma conta imensa, uma trabalheira. Hoje, um cálculo que a gente faz em um minuto, naquela época demorava duas horas. Doutor Joffre calculava as coordenadas (ver glossário). Dava pra gente os ângulos e as distâncias e a gente ia locando e ele vinha conferindo.;

A demarcação do Plano Piloto começou 35 dias depois do anúncio do vencedor do concurso do Plano Piloto, Lucio Costa. O resultado da disputa saiu em 16 de março de 1957. Em 2 de abril, o arquiteto já estava em Brasília, em sua primeira das pouquíssimas visitas ao futuro Plano Piloto. Veio com Juscelino Kubitschek e se aborreceu porque havia uma placa, preparada para recebê-lo, onde estava escrito: Avenida Monumental. Imediatamente, Joffre Parada mandou corrigir o erro e apareceu uma tábua onde se escreveu: Eixo Monumental.

Em 20 de abril, 16 homens, entre topógrafos, ajudantes de topógrafos e motoristas, pousaram para uma foto histórica, no Cruzeiro, ao lado de Joffre Parada. ;Naquele dia, íamos cravar o primeiro marco do Plano Piloto;, conta Velloso, diante da foto pendurada na parede de sua sala de trabalho. Daqueles três meses intensos que se seguiram, o engenheiro guardou lembranças indeléveis. ;Do teodolito, eu via emas e veados que se aproximavam do local que estava sendo desmatado, como se quisessem entender o que estava acontecendo.; Como o teodolito aproxima a imagem 28 vezes, o que Velloso via pela lente era uma aparição idílica num mar de Cerrado. O engenheiro guarda também recordações menos líricas. Lembra-se de um dos poucos contatos que teve com o então presidente da Novacap, Israel Pinheiro. ;Ele e Juscelino de vez em quando passavam lá na picada. Um dia, eu estava parado assim, em pé, Israel me viu e falou: ;Ô rapaz, o que é que você está fazendo aí?;. Eu respondi: ;Sou topógrafo, estou locando;. E ele me deu uma patada: ;Então trabalha, não fica aí olhando;.;

Precisão

A equipe de topógrafos, ajudantes de topógrafos e mateiros descia fincando os piquetes de 20 em 20 metros e em seguida os tratores abriam as vias. ;Era tudo muito rápido e, apesar das dificuldades, conseguimos umas precisões muito boas.; Mas houve erros. Velloso conta que já havia demarcado e desmatado uns 400 metros do Eixão Sul quando veio uma contraordem do Rio. ;Mandaram parar o desmatamento e subir a demarcação mais ou menos um quilômetro.; O jornalista Adirson Vasconcelos, autor de mais de uma dezena de livros sobre Brasília, confirma o erro: ;No primeiro cálculo, a asa ia cair no lago;.

Não houve grandes movimentos de terra na demarcação dos dois eixos. O terreno foi só descascado e nem essa tarefa foi das mais complicadas. ;Era um Cerrado ralo;, lembra Velloso, como aquele que existe até hoje ao lado da Catedral Rainha da Paz, no Parque das Sucupiras. Foram feitas escavações no cruzamento dos dois eixos para que o terreno pudesse receber a Plataforma Rodoviária. ;Houve uma movimentação de terra de mais ou menos seis ou sete metros de profundidade. A terra tirada de lá foi levada para levantar o terreno da Praça dos Três Poderes em três ou quatro metros. Havia uma máquina muito grande que ficava escavando a terra e a esteira dela ia enchendo os caminhões. Eram uns 350 caminhões que jogavam a terra na praça. E a equipe de lá já ia aterrando e compactando.; Também houve grande movimentação de terra na obra do 28, o Congresso Nacional, para a construção do edifício sob as duas cúpulas.

Para demarcar o Eixão Sul e depois o Norte, os topógrafos primeiro locaram três retas, uma depois da outra (ver reprodução de páginas da caderneta de Joffre Parada), em angulações diferentes, curvadas na direção oeste. Depois, foram demarcando a curvatura do Eixão Sul. Em seguida, os topógrafos locaram as superquadras, de 360 em 360 metros. Para evitar o efeito da refração, provocado pelo calor do sol nos aparelhos (quando a imagem fica tremida), eles trocavam o dia pela noite. Esperavam escurecer e iam para o Cerrado, com uma lanterna amarrada ao teodolito, para continuar as demarcações. ;Cheguei a pegar 2 graus à noite.; Numa dessas investidas noturnas, quando o Eixo Monumental estava pronto para receber a imprimação (ver glossário), Velloso foi contemplado com mais uma aparição: ;Era noite de lua. Olhei de longe e vi aquele Eixo Monumental branquinho cortando o Cerrado escuro. A maioria das pessoas não ia sentir nada, mas para um engenheiro, aquela imagem era apaixonante;

Longa jornada

Chovia incessantemente nos quatro dias em que o então topógrafo Ronaldo de Alcântara Velloso passou na cabine de um caminhão carregado de jabá que o trouxe de Goiânia a Brasília, em dezembro de 1956. ;Tive que descer umas 12 vezes para ajudar a desatolar o caminhão. Descarregávamos a carne, o caminhão saía do atoleiro e o carregávamos de novo.; Havia uma fila de mais de 50 caminhões atolados na estrada. Todos traziam material de construção e suprimentos para a nova capital.

Depois de quatro dias e quatro noites comendo muito mal, esfomeado, Velloso não teve saída. Comeu do jabá que havia transportado no caminhão. ;A comida era muito ruim. Era arroz, feijão e jabá. A gente partia o arroz com a faca e o feijão vinha nadando em cima de um caldo.; Àquela época, formado em técnico de agrimensura, Velloso foi convocado a demarcar a área onde seria construído o galpão da Novacap, na hoje Candangolândia. Depois, foi participar dos estudos para nivelamento da área da Barragem do Lago Paranoá. Em seguida, demarcou a Cidade Livre. Só então, começou a locação do Plano Piloto.

Em setembro de 1957, Ronaldo Velloso foi convidado pelo DER (Departamento de Estradas de Rodagem) de Goiás para fazer estudos de implantação da rodovia Goiânia/Rio Verde. O salário era duas vezes maior do que o recebido em Brasília. No governo Castelo Branco, foi convidado a fazer nova medição da rodovia Belém-Brasília, por suspeita de que estava havendo fraude nas medidas anteriores. Só em 1973, já formado em engenharia, voltou a morar em Brasília e desde então trabalha em empresa de construção de estradas. De lá para cá, já fez mais de 500 obras de estacionamento, vias, meio-fios, calçadas.

Aos 75 anos, ainda em plena atividade, o engenheiro Ronaldo de Alcântara Velloso relembra um momento crucial da história do Plano Piloto: a demarcação do Eixo Monumental, do Eixo Rodoviário e da Estaca Zero. Velloso guarda um tesouro: uma cópia da caderneta em que Joffre Mozart Parada calculou as coordenadas da nova capital

GLOSSÁRIO

Azimute: É o posicionamento de determinado ponto na Terra em relação ao norte.

Coordenadas: Cada uma das coordenadas esféricas (longitude e latitude) de um ponto no globo terrestre que tem como referência o Equador e um meridiano de origem.

Imprimação: É a aplicação de uma camada de material betuminoso sobre a superfície a ser asfaltada para impermeabilizar a área e aumentar a aderência ao revestimento.

Teodolito: Instrumento de precisão usado em topografia para medir ângulos horizontais e verticais.


LINHA DO TEMPO
MARÇO/ABRIL de 1957

12 de março ; Instala-se a Comissão Julgadora do concurso para o Plano Piloto. A Comissão se reúne no Salão de Exposições do Ministério da Educação e Cultura para avaliar os 26 projetos concorrentes.

16 de março ; Anunciado o vencedor do concurso, o projeto n; 22.

2 de abril ; Lucio Costa visita Brasília pela primeira vez. Vem com Oscar Niemeyer, Juscelino e comitiva, entre os quais os jornalistas Raymond Cartier, da revista Paris-Match e L.Kessel, da Life. Juscelino inaugura a estação de passageiros do aeroporto comercial. Percorre as obras numa caminhonete Vemag, a primeira fabricada no Brasil. Vai à Cidade Livre. Depois do almoço, JK conversa longamente com Lucio Costa.

7 de abril ; Ao meio-dia, aterrissa no aeroporto o primeiro avião comercial. Um Curtiss-Comander da Companhia Lóide Aéreo prefixo PPLDS.

20 de abril ; Uma equipe de topógrafos liderada pelo engenheiro Joffre Mozart Parada começa a demarcar o Eixo Monumental.

LEIA NA EDIÇÃO DE 13 DE AGOSTO DE 2011 ; Em maio e junho de 1957, Juscelino inaugura a pista do aeroporto comercial e o Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira. O Instituto Nacional de Imigração e Colonização (INIC) começa a acompanhar a chegada dos candangos. Em 3 de maio, 10 mil pessoas se reúnem no Cruzeiro para a primeira missa na nova capital. Os padres salesianos começam a construção do Colégio Dom Bosco.

Correio Braziliense, 13/08/2011





Nenhum comentário:

Postar um comentário