segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Trem do Entorno

Antigas estações da linha Brasília/ Luziânia são saquedas

Renato Alves

Publicação: 28/09/2009 09:12 Atualização: 28/09/2009 14:59

Aos 60 anos, Ivan Abadia tenta tirar o mato ao redor das nove casas que ajudou a erguer no início da juventude. O homem de pouco estudo, que à noite trabalha como vigilante e de dia faz bicos para engordar a renda, sempre morou na área rural de Luziânia. Viu a chegada dos candangos. Participou da construção de Brasília carregando cimento, areia e brita usados na construção da vila em torno de uma das três estações à margem da linha férrea criada para transportar passageiros da nova capital a Goiás e, de lá, para Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Desde a extinção do serviço(1), há 15 anos, Ivan e outros moradores da região testemunham o abandono e os saques ao patrimônio da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), a estatal que controlava os trens em circulação no país até o início dos anos 1990.

Entre esses bens estão as nove casas que Ivan ajudou a construir. Elas ficam na beira da malha férrea, no trecho entre as goianas Luziânia e Cristalina, a pouco mais de 70km de Brasília. Os imóveis foram erguidos seguindo o padrão das vilas de ferroviários espalhadas pelo país no século passado. Eles têm três quartos, sala, cozinha, banheiro e telhas — essas fabricadas pela RFFSA. Por 25 anos, abrigaram funcionários da estatal baseados na Estação Calambau. O nome é o mesmo da localidade onde está instalada, em meio ao cerrado do território de Luziânia. Assim como o extenso prédio que servia de dormitório a ferroviários em trânsito, as casas acabaram abandonadas em 1994, quando o último trem de passageiros passou por aqueles trilhos e o serviço de cargas foi transferido para uma empresa privada.

Sem o controle da RFFSA, as vilas perderam seus colégios, mercadinhos e moradores. No caso da Calambau, as nove casas foram desocupadas imediatamente. Outras duas, construídas um pouco mais distante dos trilhos para receber os chefes da estação e seus familiares, ficaram aos cuidados de Jaci Correia, ex-eletricista da RFFSA, hoje com 60 anos. “Quando a Rede foi extinta, já tinha criado meus filhos. Por isso, o fechamento da escola não fazia diferença para nós. Decidi ficar para ter uma chácara, comprada aqui perto”, conta ele, que tem autorização da Rede Ferroviária para ocupar uma das casas. Jaci mantém os dois imóveis em perfeito estado. O mesmo fim não tiveram os demais bens públicos da localidade. A estação e as outras nove casas acabaram saqueadas. Levaram móveis, portas e janelas.

De cinco anos para cá, as casas acabaram invadidas. Alguns fizeram pequenas obras. Outros, remendos. O conjunto está bem diferente do original. E o mato só não toma conta por causa do esforço do vigilante Ivan Abadia. Contratado pelo ex-ferroviário Jaci Correia, ele tenta limpar a área com aplicação de veneno e uma enxada. “Isso era tudo arrumado. O trem (de passageiros) era a nossa única diversão. Era uma agitação quando ele chegava. A gente vinha correndo para ver o povo. Depois (quando deixou de circular), foram deixando de mão e virou isso”, lamenta Ivan, apontando para a estação em pedaços. Cenário parecido com a da outrora charmosa Estação Bernardo Sayão, no Núcleo Bandeirante, onde por mais de duas décadas brasilienses e visitantes embarcaram e desembarcaram.

Puxadinhos
A estação entre o Guará e o Park Way nem de longe lembra o terminal da manhã de 21 de abril de 1968. Durante os festejos de mais um aniversário da capital, a chegada do primeiro trem agitava o Núcleo Bandeirante. Às 10h17, no horário previsto, a locomotiva puxando cinco vagões com passageiros ilustres saídos do Rio de Janeiro foi recebida ao som de A banda, clássico de Chico Buarque. Hoje, a estação — que homenageia o engenheiro pioneiro e amigo de Juscelino Kubitschek — serve de casa a quatro famílias invasoras. A plataforma, sempre cheia de passageiros até 1994, costuma ficar ocupada por carros e roupas penduradas em varal. A memória da ferrovia também foi apagada na maioria das 19 residências onde ex-ferroviários e famílias levam uma vida simples, de cidade do interior.

As construções da RFFSA perderam a originalidade. Obras irregulares com cores de forte tonalidade escondem as fachadas típicas da arquitetura dos anos 1960. Alguns estenderam garagens até o limite com a linha férrea. Invadiram área da União que, por segurança, deveria permanecer livre. Trilhos, patrimônio público, foram roubados. Boa parte virou cerca e pilastra dos puxadinhos. O crime se repete na Rodoferroviária. Construído em 1970, o prédio passou a receber, além de ônibus interestaduais, trens de passageiros e cargas a partir de 1981. Há 15 anos, sofre com o descaso. Os usuários enfrentam sujeira, vazamentos e desconforto. Aos fundos do terminal, no prédio de manobras, ladrões agem impunemente há dois meses, desde que o galpão alugado por uma grande indústria perdeu a vigilância armada.

Com o uso de maçaricos e caminhões-guindaste, segundo trabalhadores da região, mais de 400 metros de trilhos — 200m de cada lado da linha — acabaram saqueados, além de dezenas de dormentes, as madeiras onde se fixa a malha férrea. O Correio constatou o roubo, assim como a destruição do galpão, de onde levaram todo o alambrado, geradores, janelas, portas e material de acabamento. A concessionária da malha férrea Centro-Oeste mantém apenas um segurança para todo o trecho Brasília-Luziânia. A RFFSA não tem um guarda para cuidar do patrimônio à margem dessa linha, que inclui ainda a Estação Jardim do Ingá, perto de Valparaíso (GO), onde apenas as residências da Rede, também ocupadas por antigos ferroviários, continuam imunes ao vandalismo e à ação de criminosos.

Rodeada por casas com paredes descascadas e espremidas em ruelas, era para essa estação que, de carro ou de ônibus, corriam os passageiros que perdiam o trem na Bernardo Sayão ou na Rodoferroviária. “A gente via o sufoco e a alegria do povo. O trem movimentava isso aqui”, recorda, saudosa, Maria Helena Falcão, 58 anos, moradora do Jardim Ingá. Hoje, ela e os vizinhos convivem com o barulho ensurdecedor dos vagões carregados de grãos e combustíveis que passam pelos trilhos gastos, geralmente à noite. Durante o dia, carroças, bicicletas, crianças, velhos e senhoras cruzam a linha férrea.

1- Trens candangos
Por quase três décadas, dois trens cruzaram as linhas férreas do DF levando passageiros. O Expresso Brasil, que ligava Brasília ao Rio de Janeiro, passando por Belo Horizonte, deixou de circular em 1984. Dez anos depois, o Bandeirante, mais moderno e luxuoso, fez a última viagem para São Paulo.

Reativação em estudo
O governo federal anunciou, em 2003, a retomada do transporte de passageiros nos 70km entre o Plano Piloto e Luziânia. O plano, que não previa a troca da linha nem compra de vagões — seriam reformados vagões de propriedade da União, parados em São Paulo —, estava estimado em R$ 15 milhões. Agora, o senador Marconi Perillo (PSDB-GO), que participou das discussões há seis anos como governador de Goiás, quer a retomada do plano. Ninguém sabe quanto custará a nova proposta de Perillo. Segundo o secretário de Transportes do DF, Alberto Fraga, o projeto está em estudo e os custos estimados “são altos”. Será preciso trocar toda a rede de trilhos e investir na compra de vagões. “A rede que existe é de 1m (de largura). Mas os técnicos dizem que o trem para transporte de passageiro tem que ter 1,4m”, explicou Fraga.

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