domingo, 17 de outubro de 2010

Exposição inédita revela passo a passo e bastidores da criação de BrasíliaLinhas que escreveram a cidade surgem por meio de cartas de anônimos e documentos de personalidades da história local

17/10/2010 - Correio Braziliense - Leilane Menezes

Em meio à poeira dos canteiros de obra, enquanto nascia Brasília, edificavam-se também histórias de amor. Casais apaixonavam-se, outros sofriam separados pela odisseia da construção de uma nova capital. A amizade era o que ajudava a passar com mais alegria as horas debaixo de sol quente, em barracos improvisados. É essa cidade de outros tempos que a exposição Cartas de Brasília apresenta ao público, até 19 de dezembro, no Museu Vivo da Memória Candanga.

Ali, a história brasiliense é contada sob o ponto de vista de quem a fez com as próprias mãos. São mais de 150 documentos expostos, entre cartas, reproduções de títulos de eleitor — entre eles o de Oscar Niemeyer —, velhos bilhetes aéreos e muito mais. Juntos, os itens ajudam a visualizar o cenário de antigamente. As curadoras da exposição, Márcia Turcato e Tânia Ribeiro, e a produtora Daiana Castilho quiseram homenagear Brasília nos 50 anos da cidade.

As curadoras Márcia Turcato e Tânia Ribeiro e a produtora Diana Castilho Dias: mostra inspirada em literatura
Uma das primeiras cartas a serem lidas pelo visitante, logo na entrada da exposição, revela o amor de Laudelino José Ferreira e sua Jurêdes Figueira. Os dois se conheceram em Brasília, no ano da inauguração. Ele chegou em março de 1958, com um tio, vindo de Uberaba (MG). Ela, um pouco depois, em 1959, com a família, vinda do Rio de Janeiro. Laudelino era datilógrafo do Banco do Brasil, conseguia fazer 330 toques na máquina de escrever por minuto. O mais habilidoso fazia 180. A destreza chamou a atenção da auxiliar administrativa Jurêdes, que observava o rapaz. O desfecho dessa história está na carta e revela costumes daquela época.

O papel envelhecido guarda um pedido de casamento: “Brasília, 29 de agosto de 1960. Prezado senhor Belmont, tenho a satisfação de escrever-lhe pela primeira vez… A principal finalidade desta é a seguinte: estou namorando com sua filha Jurêdes há quatro meses. Como o senhor reside bem distante daqui (no Rio de Janeiro), creio com isto que ainda não deve ter tomado conhecimento de nosso namoro. Acontece, porém que gostei de sua filha e estou interessado em me casar com ela. Venho por intermédio dessa simples carta pedir o vosso consentimento, desde que escrevo esta de acordo com Jurêdes”.

Quase um mês de ansiedade se passou até a chegada da resposta: “Rio Bonito, 15-9-1960. Prezado amigo Laudelino José Ferreira, escrevo-lhe estas linhas a fim de responder sua carta… Sobre o vosso pedido, foi aceito com muito prazer. Do amigo João”. O casamento se deu no ano seguinte, na Igrejinha da 108 Sul. Hoje, Laudelino e Jurêdes têm 72 anos e quatro filhas, todas brasilienses. O casal esteve na abertura da exposição e se comoveu ao relembrar o passado. “Me sinto emocionado. Ela é meu grande amor há 49 anos”, disse Laudelino, com os olhos cheios d’água, antes de dar um beijo apaixonado em Jurêdes.

Emprego
As cartas que chegavam e saíam de Brasília levavam muito mais do que propostas de casamento. Em uma delas, uma moça pedia emprego para o marido, diretamente ao então presidente da República, JK. Na esperança de se mudar de Goiânia para Brasília com o marido, João Alcides, um desenhista técnico, Adersoni Homar, conhecida como Soni, escreveu: “O senhor sabe como é difícil arrumar uma vaga dessas. Mas o senhor querendo, pode arrumar. E quem sabe arruma até para mim”. Ela reclamava que o marido trabalhava muito e ganhava pouco.

Soni era presidenta da Ala Moça de um partido político, o PSD. Dizia-se correligionária de JK, apesar da pouca idade, “20 e poucos anos”, como ela mesma relata. “JK respondeu a carta dela. Arrumou emprego para o marido dela, mas ele nem precisou. Quando chegou a Brasília, já teve outra proposta de Lucio Costa, que pagava melhor. Eles fizeram família e carreira aqui. Soni começou a trabalhar no Hospital de Base. Cursou medicina na UnB. Chegou à chefia do hospital”, relatou Márcia. Todas essas histórias podem ser revividas de perto no Museu Vivo.

Surpresas
A mostra traz ainda curiosidades, como a carta na qual Niemeyer explica ao então governador José Aparecido por que não gostaria de se lançar deputado. Há também uma cópia do título de eleitor do arquiteto. Poucos sabem que ele é registrado na zona eleitoral 653 do DF. Em outra carta, endereçada a Aparecido, Niemeyer justifica sua ausência na própria festa de aniversário.

“Hoje voltei a pensar nas comemorações que você com tanta generosidade vem programando para o meu aniversário e nos amigos que o cercam… Delas não vou participar. Primeiro, é um problema de consciência. Afinal, muitos brasileiros que por maiores feitos as mereciam não as receberam. Segundo, porque não me sinto com direito para tantas honrarias. Na verdade, meu amigo, passei pela vida como outro homem qualquer. Nada de excepcional. Os mesmos problemas, sonhos e tristezas… Confesso, caro amigo, que meu desejo é passar meu aniversário em completo anonimato.”

Além de ver os escritos, o visitante participa. Poderá depositar em uma urna seus desejos para Brasília nos próximos 50 anos. No centenário da cidade, o compartimento será aberto e os bilhetes, revelados. “Queríamos a interação do público com a exposição”, explicou Tânia. É possível também escrever um cartão-postal anônimo e deixá-lo em uma caixinha, à disposição de quem queira trocar correspondência. Nas paredes, são reproduzidos vídeos e áudio com entrevistas dos pioneiros. E também há frases emblemáticas.

Correspondências
Um dos maiores colaboradores dessa exposição foi Ildeu de Oliveira, primo de JK. Ele contou histórias e indicou personagens. Ildeu chegou a Brasília em 1957. Ajudou a construir a primeira escola da nova capital, chamada Júlia Kubitschek, na Candangolândia, e o colégio Elefante Branco, na Asa Sul. Além das lembranças, ele guarda uma pasta com correspondências. Algumas cartas, porém, foram extraviadas. “Levei para tirar cópia e devo ter esquecido no local”, explicou.

A maioria estava assinada por JK ou por dona Sarah. Em uma delas, o presidente recordava o avô de Ildeu, que o ajudou financeiramente quando JK era um estudante de medicina, “para que pudesse parar de trabalhar nos telégrafos à noite e tratar da tuberculose que se instalava nos pulmões”. As curadoras da exposição postaram em um blog o pedido para que quem encontrasse os originais entrasse em contato. Até agora, porém, nada.

Ideia reciclada
A iniciativa de reavivar o conteúdo das cartas, porém, surgiu de uma inspiração vinda de longe. Há um ano, na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), as curadoras tiveram contato com as ideias da artista plástica francesa Sophie Calle. Entre 2008 e 2009, Sophie esteve em alta no Brasil e no mundo. Isso porque convidou 107 mulheres para responderem em seu lugar a uma carta de rompimento enviada pelo então namorado. O resultado desse término coletivo se tornou a exposição Cuide-se.

Nela, o conteúdo do adeus — que terminava com a mensagem que deu título à mostra — e as sugestões de resposta viraram atração de museu e tema de rodas de discussão, inclusive na Flip de 2009. “Percebemos então a possibilidade de usar cartas para contar a história de Brasília. Tínhamos muita vontade de mostrar a história do dia a dia da cidade, vista por pessoas comuns”, explicou Márcia. O resultado é uma viagem no tempo.

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